O baixo diabólico
Com o baixo vieram os amigos, primos e vizinhos que durante todo esse Verão se sentaram aos pés da minha cama para ouvir-me tocar. Não será demais dizer que o meu entusiasmo foi tanto que os mesmos ouvintes que uns dias antes me aplaudiam entusiasticamente, ao final de 2 dias começaram com as súplicas: “isto é demais, será que ela não vai parar??”. Não fora o facto de então, paralelamente aos segredos do baixo, ter descoberto também os segredos cavernosos da garganta de Nick Cave… acompanhado pelos Bad Seeds, gesticulando com a sua expressão tão “Twin Peakesca” que quão bem explorada seria pelo próprio David Lynch.
Nick Cave conhecia as profundezas mais obscuras e macabras da alma humana e sabia-as bem expressar musicalmente. E que paralelismo possível entre tamanho vulto da música alternativa e uma miúda de quinze anos fazendo-se acompanhar do seu baixo eléctrico? Das cordas daquele baixo saíam os sons mais diabolicamente depressivos que alguém podia imaginar. Levando mesmo, numa noite, um dos hóspedes dos meus pais – uma outra teenager de 15 anos vinda de férias de Cabo Verde- a fechar-se no closet do quarto desesperada a chorar (as letras das músicas conseguiam ser bastante expressivas). Felizmente voltou a sair de lá algumas horas depois, após as várias tentativas de negociação por parte da minha mãe.
Espanto foi o meu quando passados uns dias recebemos também a visita da prima da minha mãe. Trazia com ela a sua filha e junto a ela o seu namorado, roliço candidato de bochechas vermelhas e jeito de Herman José que conseguia levar a cabo grandes sessões de risota perante uma plateia arrebatada. O meu pai adorava-o. Ele era o príncipe da “informática”, não fora o facto de trabalhar ele mesmo numa loja de computadores – esse então misterioso ser que começava então a entrar nas nossas vidas (quem? O Rui ou o Computador?).
Rapidamente o andar de cima da moradia foi tomado por sonoridades do “indie” alternativo da época. “Gigantic”, “Hey”, “This monkey is going to Heaven”, entre outras canções deram o mote para uma nova fase dessas férias. A tal prima e o seu potencial candidato a marido admitiram a meus pés em tom comovido que a “sua” música (isto invocando a memorável série do Guilherme Leite – “Cenas de um Casamento” – em que o apresentador incitava os noivos a revelarem o nome da música que ateou o dito romance) era nem mais nem menos “This Monkey is going to Heaven” dos Pixies: “E tão bem que tocas!! Por favor toca lá mais uma vez a nossa música!!”
E numa visita que inicialmente não passava de uma visita ocasional, os primos lá ficaram a passar mais uma semana, resistindo aos grupos de familiares e amigos que chegavam e partiam.
E entre mergulhos na Praia de Porto-Covo, assaltos às lojas de Bolas de Berlim e geladarias ao cair da tarde, seguidas de sessões musicais mais ou menos unânimes, restaram apenas duas fotografias. Numa, a imagem de cinco traseiros mergulhando em simultâneo nas límpidas águas de Pôrto-Covo. A segunda guardo-a eu, secretamente na minha memória. É um dos tantos retratos que sucedem os episódios que compõem a minha vida. Num tempo em que a vida se compunha nas cordas de um baixo.
O Condutor
À saída do Alentejo sou tomada por uma breve e recorrente sensação...
É noite... o carro ladeia as estradas mal-alcatroadas da região onde cresci. Atrás os meus filhos dormem um sono tranquilo, embalados pela certeza de que "alguém" olha por eles.
É noite (sim... é noite), está escuro... as estradas são mal iluminadas. Nas bermas ergue-se o extenso pinhal e os meus sentidos indicam-me sempre a direcção do mar. Quase consigo ouvir a rebentação das ondas no extenso areal e os pinheiros e árvores de eucalipto num bailado dramático, embalados por essa música cósmica.
É noite (sim... é noite) está escuro... e uma breve e antiga sensação volta a assaltar-me o peito... tento não pensar nisso... abstrair-me com qualquer coisa... tentar calar esses fantasmas... ligo o rádio do carro.
É noite (sim... está escuro). Nem o rádio do carro consegue sossegar esta agitação.
O carro agora ruma noutra direcção e a certeza de que "alguém" olha por mim embala, o meu caminho. Fecho os olhos. Estou sentada agora no banco de trás e já não sou eu que conduzo nesta estrada. Sei que posso fechar os olhos embalada pelo balanço do carro e por umas mãos gentis que me afagam a testa e pela certeza de que no final do caminho chegaremos a casa.
É noite... está escuro... olho pelo espelo retrovisor. Os meus filhos dormem um sono tranquilo. Volto a tomar o comando do carro... rumo até casa.
ESTAÇÃO DOS SONHOS
Cambalhota esvoaça diante si e ri em tom provocatório... dá mais uma cambalhota no ar...
- Estou cansada, não vez? Agora não tenho tempo para andar aí a flutuar -
enfia-se numa barquinha, onde pouco mais cabem do que as suas próprias pernas e... com um nó na garganta e uma angústia no peito inicia a sua viagem...
Cambalhota fica do lado de cá a olhar... lamentando que a amiga não tenha ficado hoje para brincar.
Hoje o rio está calmo... e uma ligeira brisa baila no ar, portanto só lhe resta esperar que as marés façam o seu trabalho e a conduzam até à outra margem... hoje parecem preguiçosas... avançam devagar... param, voltam para trás em vagas, depois avançam para retroceder mais uma vez.
- Assim nunca mais chegamos ao outro lado. Vá lá! Hoje não tenho tempo para brincadeiras... temos tudo a nosso favor: o vento, o tempo e até as margens hoje estão mais próximas uma da outra, por isso despachem-se! - gritou ela num tom impaciente.
As marés lá se endireitaram e num convulsionar empurram a barquinha para o outro lado. Por instantes ela quase caiu na água. Isso hoje não seria de todo conveniente, pois hoje tinha um sério compromisso. Afinal de contas tinha contas a prestar, não fosse o facto de na vida paralela, não andar a cumprir com os seus devidos compromissos.
Olha para trás e ainda vê Cambalhota nas suas brincadeiras. Parece que arranjou um novo amigo.
E chegada finamente ao vale da sua vida, nada lhe parece familiar. - Estranho - pensa. Já lá esteve tantas vezes mas não se recorda de alguma vez de ter visto o vale desta forma.
TINY TEARS
(press PLAY to listen)
Tiny tears make up an ocean
Tiny tears make up a sea
Let them pour out, pour out all over
Don't let them pour all over me
Hoje
A MINHA GERAÇÃO
A GERAÇÃO do JP
"Geração 70"
"A minha geração já se calou, já se perdeu, já amuou, / já se cansou, desapareceu, ou então casou, ou então mudou, / ou então morreu; já se acabou. / A minha geração de hedonistas e de ateus, de anti-clubistas, / de anarquistas, deprimidos e de artistas, e de autistas / estatelou-se docemente contra o céu. / A minha geração ironizou o coração, alimentou a confusão, / brincou às mil revoluções armando gestos e protestos e canções, / pelo seu estilo controverso. / A minha geração só se comove com excessos, com hecatombes, / com acessos de bruta cólera, de mortes, de misérias, de mentiras, / de reflexos da sua funda castração. / A minha geração é herdeira do silêncio, / dos grandes paizinhos do céu, / da indecência, do abuso, / e um belo dia esqueceu tudo e fez-se à vida / na cegueira do comércio. / A minha geração é toda a minha solidão, é flor de ausência, sonho vão, / aparição, presságio, fogo de artifício, toda vício, toda boca / e pouca coisa na mão. / Vai minha geração, ergue a cabeça e solta os teus filhos no esplendor / do lixo e do descuido, deixa-te ir enquanto o sabor acre da desistência vai / corroendo a doçura da sua infância. / Vai minha geração, reage, diz que não é nada assim, / que é um lamentável engano, erro tipográfico, estatística imprecisa, puro / preconceito, que o teu único defeito é ter demasiadas / qualidades e tropeçar nelas. / Vai minha geração, explica bem alto a toda a gente que és por demais / inteligente para sujar as mãos neste velho processo, triste traste de Deus, / de fingir que o nossos destino é ser um bocadinho melhores do que antes. / Vai minha geração, nasceste cansada, mimada, doente por tudo e por nada, / com medo de ser inventada, o que é que te falta agora que não te falta nada? / Poderá uma pobre canção contribuir para a tua regeneração / ou só te resta morrer desintegrada? / Mas minha geração, valeu a trapaça, até teve graça, / tanta conversa, tanta utopia tonta, tanto copo, / e a comida estava óptima! O que vamos fazer?"
SITES OBRIGATÓRIOS:OUTONO
NO PRINCÍPIO ERA O ESCURO
NO PRINCÍPIO ERA O ESCURO
Deste novo ser ainda só ecoa o silêncio
Lá fora ouve-se o murmúrio do mar
Compassado por esta batida cardíaca que me acompanha desde sempre e que marca o ritmo dos meus passos, em jeito de dança frenética
Algo em mim anuncia um novo deslumbre
Permaneço quieta, imóvel
Estremeço
Indigno-me
Depois o reconhecimento invade todos os meus sentidos apoderando-se do meu corpo
Apercebo-me então que carrego em mim o sentido da vida e que esse rio imenso e ondulante vem desaguar em mim...
RELATOS DE UM NÃO-FUMADOR
DESEJO DE ME INCENDIAR
I SHOULD BE A SURFER
E quando o mar está como estava no último Sábado não posso evitar correr pela rebentação e andar como louca (não me assemelho em nada aos restantes transeuntes que saboreiam o mar). Ando descontroladamente, avanço e recuo com a rebentação como se a rebentação guiasse o meu compasso. Apetecia-me mergulhar, mas controlo esta tensão que me impele de navegar sem rumo e, depressa, num compasso fúnebre, regresso ao areal.
Os surfistas parecem-se lontras marinhas nos seus fatos pretos flutuantes, aguardando pela Onda Perfeita. Vêm-me à cabeça palavras como OFF-SHORE, SETS... cujo significado prático desconheço. Vejo-os caminhar alheios à realidade. Andam em bandos como se de aves se tratassem e seguem rigorosamente todos os rituais. Independentemente do impulso que os sustém de se atirar ao mar, caminham pela praia conscientes da sua superioridade moral e da convicção de fazerem parte de algo superior ao qual os restantes seres humanos (os que no momento caminham pela praia) se vêm excluidos. E é impossível ficar indiferente ao espectáculo que se desenrola diante dos nossos olhos.E na diversidade de seres humanos naufragados no areal distingo alguns exemplares: o grupo de brasileiros, que relaxadamente saboreiam a praia e a companhia dos seus; os dois casais de trintões que se matam a trabalhar para manter, pelo menos as aparências, como se a vida se resumisse apenas a isso, e que em curtos lapsos de tempo vêm despertar a sua humanidade no areal; o casal de “freaks” que infringindo todas as regras, desafiam o sol e até as marés e se banham indisciplinadamente com os seus filhotes (imunes a todas as espécies de doenças).
Por um longo espaço de tempo imagino-me invisível a caminhar descalça pela rebentação, levantando a saia para não a molhar (e é este gesto precisamente que me permite manter alguma sobriedade mental), quando sou abordada por uma estrangeira residente que me questiona se de certeza que sou portuguesa. (Fico para aqui a matutar o que a terá levado a contrário o contrário? Hum! Serei “ALIEN”?)
VINDIMAS
Só, inicio a apanha dos frutos da minha vida (espero que sejam doces e suculentos)
fecho um capítulo e abro um novo livro
na minha ânsia de recomeçar faço o meu próprio funeral
sonho que sou fantasma
e como fantasma que sou inicio esse novo ciclo da minha existência
(e agora, um prenúncio de esperança cintila no escuro...)
GÁRGULAS
SMITHS E PRÉ-ADOLESCÊNCIA
Há uns anos atrás a minha irmã (eu com 12 anos, ela com 21) diria: lá estás tu a ouvir essa porcaria de música neuro-depressiva, caraças! Se assim fosse eu sentar-me-ia na minha cama a saborear chocolates e a ouvir impávida e serena a música, alheia às suas provocações e possivelmente responder-lhe-ia entre-dentes e sem lhe dirigir o olhar: eu gosto de música neuro-depressiva (o que é isso exactamente?).Entretanto tentaria tirar a letra da canção “Take me out” dos Smiths que iria acabar inevitavelmente por sair uma grande inglesada (que experiência tão, tão, poderei dizer “criativa”?). Os meus irmãos, todos eles substancialmente mais velhos que eu limitar-se-iam a gozar e a cantar-me as músicas segundo a minha interpretação, enquanto eu, protegida pelo lugar de maninha pequenina, dar-me-ia ao luxo de declamar patetices dos Smiths e do Lloyd Cole conforme bem entendesse. Haviam também os Violent Femmes, os Housemartins (Santo Deus, terá sido assim há tanto tempo que eu já não me consigo lembrar do seu nome?), os Proclaimers (estou a falar na minha pré-adolescência) e enfim… houve mais, muitos mais. (Se é verdade que a música define de certa forma algumas orientações pessoais, que raio de pessoa serei eu?).