Quando tinha 15 anos e descobri os segredos da música nas cordas de um baixo eléctrico costumava entreter-me a escutar as minhas músicas preferidas e a tentar reproduzir aquele som quase inaudível que prestando bem atenção era o “soul” da composição. O rock minimalista do “indie pop” tomou conta dos meus dedos. Obriguei os meus pais a arranjarem mais um espaço no exíguo porta-bagagens (exíguo porque estava completamente cheio) do Citroen ZX, quando fomos de férias para Santo André em Agosto. Como eles não arranjaram o dito espaço viajei com o mesmo durante cerca de 3 horas. Fui toda a viagem a segurar o braço do baixo, mantendo-o de pé. Não foi efectivamente a viagem mais confortável que fiz na minha vida, mas valeu o esforço.
Com o baixo vieram os amigos, primos e vizinhos que durante todo esse Verão se sentaram aos pés da minha cama para ouvir-me tocar. Não será demais dizer que o meu entusiasmo foi tanto que os mesmos ouvintes que uns dias antes me aplaudiam entusiasticamente, ao final de 2 dias começaram com as súplicas: “isto é demais, será que ela não vai parar??”. Não fora o facto de então, paralelamente aos segredos do baixo, ter descoberto também os segredos cavernosos da garganta de Nick Cave… acompanhado pelos Bad Seeds, gesticulando com a sua expressão tão “Twin Peakesca” que quão bem explorada seria pelo próprio David Lynch.
Nick Cave conhecia as profundezas mais obscuras e macabras da alma humana e sabia-as bem expressar musicalmente. E que paralelismo possível entre tamanho vulto da música alternativa e uma miúda de quinze anos fazendo-se acompanhar do seu baixo eléctrico? Das cordas daquele baixo saíam os sons mais diabolicamente depressivos que alguém podia imaginar. Levando mesmo, numa noite, um dos hóspedes dos meus pais – uma outra teenager de 15 anos vinda de férias de Cabo Verde- a fechar-se no closet do quarto desesperada a chorar (as letras das músicas conseguiam ser bastante expressivas). Felizmente voltou a sair de lá algumas horas depois, após as várias tentativas de negociação por parte da minha mãe.
Espanto foi o meu quando passados uns dias recebemos também a visita da prima da minha mãe. Trazia com ela a sua filha e junto a ela o seu namorado, roliço candidato de bochechas vermelhas e jeito de Herman José que conseguia levar a cabo grandes sessões de risota perante uma plateia arrebatada. O meu pai adorava-o. Ele era o príncipe da “informática”, não fora o facto de trabalhar ele mesmo numa loja de computadores – esse então misterioso ser que começava então a entrar nas nossas vidas (quem? O Rui ou o Computador?).
Rapidamente o andar de cima da moradia foi tomado por sonoridades do “indie” alternativo da época. “Gigantic”, “Hey”, “This monkey is going to Heaven”, entre outras canções deram o mote para uma nova fase dessas férias. A tal prima e o seu potencial candidato a marido admitiram a meus pés em tom comovido que a “sua” música (isto invocando a memorável série do Guilherme Leite – “Cenas de um Casamento” – em que o apresentador incitava os noivos a revelarem o nome da música que ateou o dito romance) era nem mais nem menos “This Monkey is going to Heaven” dos Pixies: “E tão bem que tocas!! Por favor toca lá mais uma vez a nossa música!!”
E numa visita que inicialmente não passava de uma visita ocasional, os primos lá ficaram a passar mais uma semana, resistindo aos grupos de familiares e amigos que chegavam e partiam.
E entre mergulhos na Praia de Porto-Covo, assaltos às lojas de Bolas de Berlim e geladarias ao cair da tarde, seguidas de sessões musicais mais ou menos unânimes, restaram apenas duas fotografias. Numa, a imagem de cinco traseiros mergulhando em simultâneo nas límpidas águas de Pôrto-Covo. A segunda guardo-a eu, secretamente na minha memória. É um dos tantos retratos que sucedem os episódios que compõem a minha vida. Num tempo em que a vida se compunha nas cordas de um baixo.