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O Condutor

À saída do Alentejo sou tomada por uma breve e recorrente sensação...

É noite... o carro ladeia as estradas mal-alcatroadas da região onde cresci. Atrás os meus filhos dormem um sono tranquilo, embalados pela certeza de que "alguém" olha por eles.

É noite (sim... é noite), está escuro... as estradas são mal iluminadas. Nas bermas ergue-se o extenso pinhal e os meus sentidos indicam-me sempre a direcção do mar. Quase consigo ouvir a rebentação das ondas no extenso areal e os pinheiros e árvores de eucalipto num bailado dramático, embalados por essa música cósmica.

É noite (sim... é noite) está escuro... e uma breve e antiga sensação volta a assaltar-me o peito... tento não pensar nisso... abstrair-me com qualquer coisa... tentar calar esses fantasmas... ligo o rádio do carro.

É noite (sim... está escuro). Nem o rádio do carro consegue sossegar esta agitação.

O carro agora ruma noutra direcção e a certeza de que "alguém" olha por mim embala, o meu caminho. Fecho os olhos. Estou sentada agora no banco de trás e já não sou eu que conduzo nesta estrada. Sei que posso fechar os olhos embalada pelo balanço do carro e por umas mãos gentis que me afagam a testa e pela certeza de que no final do caminho chegaremos a casa.

É noite... está escuro... olho pelo espelo retrovisor. Os meus filhos dormem um sono tranquilo. Volto a tomar o comando do carro... rumo até casa.

OUTONO

Eu sou árvore...
(eis as memórias que se volatilizam, transformando-me num novo ser)
dispo-me sem pudor e o meu corpo despido é hibernação
cada folha que liberto são memórias voláteis de tudo aquilo que eu já fui
e em jeito amnésico aguardo o perene recomeço

NO PRINCÍPIO ERA O ESCURO

lembranças de outras vidas em mim

NO PRINCÍPIO ERA O ESCURO

Deste novo ser ainda só ecoa o silêncio
Lá fora ouve-se o murmúrio do mar
Compassado por esta batida cardíaca que me acompanha desde sempre e que marca o ritmo dos meus passos, em jeito de dança frenética

Algo em mim anuncia um novo deslumbre

Permaneço quieta, imóvel
Estremeço
Indigno-me
Depois o reconhecimento invade todos os meus sentidos apoderando-se do meu corpo
Apercebo-me então que carrego em mim o sentido da vida e que esse rio imenso e ondulante vem desaguar em mim...

I SHOULD BE A SURFER

Passo tanto tempo sem fazer estas viagens até ao oceano, que quando o faço sinto-me incapaz de conter esta vontade de me diluir em gota de água.
E quando o mar está como estava no último Sábado não posso evitar correr pela rebentação e andar como louca (não me assemelho em nada aos restantes transeuntes que saboreiam o mar). Ando descontroladamente, avanço e recuo com a rebentação como se a rebentação guiasse o meu compasso. Apetecia-me mergulhar, mas controlo esta tensão que me impele de navegar sem rumo e, depressa, num compasso fúnebre, regresso ao areal.
Os surfistas parecem-se lontras marinhas nos seus fatos pretos flutuantes, aguardando pela Onda Perfeita. Vêm-me à cabeça palavras como OFF-SHORE, SETS... cujo significado prático desconheço. Vejo-os caminhar alheios à realidade. Andam em bandos como se de aves se tratassem e seguem rigorosamente todos os rituais. Independentemente do impulso que os sustém de se atirar ao mar, caminham pela praia conscientes da sua superioridade moral e da convicção de fazerem parte de algo superior ao qual os restantes seres humanos (os que no momento caminham pela praia) se vêm excluidos. E é impossível ficar indiferente ao espectáculo que se desenrola diante dos nossos olhos.E na diversidade de seres humanos naufragados no areal distingo alguns exemplares: o grupo de brasileiros, que relaxadamente saboreiam a praia e a companhia dos seus; os dois casais de trintões que se matam a trabalhar para manter, pelo menos as aparências, como se a vida se resumisse apenas a isso, e que em curtos lapsos de tempo vêm despertar a sua humanidade no areal; o casal de “freaks” que infringindo todas as regras, desafiam o sol e até as marés e se banham indisciplinadamente com os seus filhotes (imunes a todas as espécies de doenças).

Por um longo espaço de tempo imagino-me invisível a caminhar descalça pela rebentação, levantando a saia para não a molhar (e é este gesto precisamente que me permite manter alguma sobriedade mental), quando sou abordada por uma estrangeira residente que me questiona se de certeza que sou portuguesa. (Fico para aqui a matutar o que a terá levado a contrário o contrário? Hum! Serei “ALIEN”?)

SMITHS E PRÉ-ADOLESCÊNCIA

(press PLAY to listen)

Há uns anos atrás a minha irmã (eu com 12 anos, ela com 21) diria: lá estás tu a ouvir essa porcaria de música neuro-depressiva, caraças! Se assim fosse eu sentar-me-ia na minha cama a saborear chocolates e a ouvir impávida e serena a música, alheia às suas provocações e possivelmente responder-lhe-ia entre-dentes e sem lhe dirigir o olhar: eu gosto de música neuro-depressiva (o que é isso exactamente?).Entretanto tentaria tirar a letra da canção “Take me out” dos Smiths que iria acabar inevitavelmente por sair uma grande inglesada (que experiência tão, tão, poderei dizer “criativa”?). Os meus irmãos, todos eles substancialmente mais velhos que eu limitar-se-iam a gozar e a cantar-me as músicas segundo a minha interpretação, enquanto eu, protegida pelo lugar de maninha pequenina, dar-me-ia ao luxo de declamar patetices dos Smiths e do Lloyd Cole conforme bem entendesse. Haviam também os Violent Femmes, os Housemartins (Santo Deus, terá sido assim há tanto tempo que eu já não me consigo lembrar do seu nome?), os Proclaimers (estou a falar na minha pré-adolescência) e enfim… houve mais, muitos mais. (Se é verdade que a música define de certa forma algumas orientações pessoais, que raio de pessoa serei eu?).